BR do Mar navega em meio a incertezas
Na tentativa de reduzir a dependência do Brasil do transporte rodoviário, baratear os custos da navegação de cabotagem e fomentar a indústria naval, o governo propôs —e aprovou — no Congresso Nacional a Lei 14.301/22, que institui o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem. O diploma ficou conhecido como BR do Mar.
Ele flexibilizou vários pontos referentes ao afretamento de navios estrangeiros por parte das Empresas Brasileiras de Navegação (EBN), que passam a poder, por meio de subsidiárias de fora do País, arrendar navios estrangeiros. “Com essa nova estrutura, estabeleceu-se o que o mercado informalmente denominou de “EBN sem navio”, alterando significativamente as regras anteriores que obrigavam que uma EBN fosse proprietária de embarcação, por exemplo”, explicam os advogados Bernardo Mendes Vianna e Erika Chaves, sócio e associada do Vieira Rezende Advogados.
Apesar das boas intenções, a nova lei vem sendo criticada no mercado de cabotagem. Há temores de que ela ocasione concentração do mercado em vez de aumento da competição. Como as EBNs não precisarão investir em frota própria, o receio é que haja desestímulo à indústria naval.
Na entrevista abaixo, Vianna e Chaves explicam as principais alterações promovidas pelo BR do Mar e por que há incertezas se o diploma conseguirá alcançar seus objetivos.
Quais foram as principais mudanças estabelecidas pela Lei 14.301/22?
Bernardo Mendes Vianna e Erika Chaves: O objetivo precípuo da Lei 14.301/22, desde a apresentação do Projeto 4.199/2020 junto ao Congresso Nacional, foi o de estimular a competitividade saudável na navegação de cabotagem brasileira, visando o fomento e a expansão da indústria naval, a redução de custos e a retomada das demandas por construção de embarcações em estaleiros nacionais.
Dentre as principais mudanças introduzidas pela lei que instituiu o referido Programa de Estímulo à navegação de cabotagem na costa brasileira, destacamos a expansão das possibilidades de afretamento de embarcações estrangeiras pela modalidade contratual “por tempo” (time charter) e “por viagem” (voyage charter), bem como a flexibilização inovadora quanto ao afretamento de navios estrangeiros sob modalidade denominada “a casco nu” (bareboat charter).
Segundo a nova lei, que alterou parcialmente o artigo 10 da Lei 9.432/97 (que dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário), o afretamento dos navios estrangeiros na modalidade “a casco nu”, com suspensão de bandeira, poderá ser formalizado por meio de contrato entre a Empresa Brasileira de Navegação (EBN) e sua subsidiária integral estrangeira (cuja totalidade das ações pertence à sociedade brasileira) ou subsidiária integral de uma outra EBN.
Com essa nova estrutura, estabeleceu-se o que o mercado informalmente denominou de “EBN sem navio”, alterando significativamente as regras anteriores que obrigavam, a grosso modo, que uma EBN fosse proprietária de embarcação ou com contratação de uma em construção. Neste particular, a nova lei previu a constituição de Empresas Brasileiras de Investimento na Navegação (conhecidas como EBN-i), autorizadas a afretar navios estrangeiros na modalidade “por tempo”, durante a construção de sua própria frota, a ser afretada para EBNs operarem.
Outra inovação que merece destaque é aquela referente a navios estrangeiros afretados, autorizados a operar em cabotagem, na medida em que serão submetidos automaticamente ao regime de admissão temporária, beneficiando-se da suspensão total de diversos tributos federais.
Como se dará a participação de empresas estrangeiras na navegação de cabotagem no Brasil? Há limitações para o afretamento de navios estrangeiros?
Bernardo Mendes Vianna e Erika Chaves: Conforme determinado pela nova lei, o afretamento de embarcações estrangeiras por EBNs somente se dará por meio de subsidiárias de EBNs no exterior. Portanto, a exploração da navegação de cabotagem continua sendo um privilégio das empresas constituídas no Brasil e de acordo com os requisitos técnicos, jurídicos e econômicos impostos pela legislação brasileira.
Para que uma empresa possa se qualificar no Programa de Estímulo, a nova lei estabelece diversos requisitos, muitos deles ainda pendentes de regulamentação. De todo modo, desde já, pode-se mencionar as seguintes exigências: estar em dia com o pagamento de tributos, obter a autorização para ser uma EBN para navegação de cabotagem e prestar informações periódicas sobre sua operação no Brasil. Uma vez qualificada para o programa, a EBN, então, poderá afretar navios junto à sua subsidiária estrangeira (ou subsidiária estrangeira de outra EBN) para operar na cabotagem nacional, desde que tais embarcações sejam de propriedade daquelas ou, ainda, estejam sendo por elas operadas por contratos de afretamento “a casco nu”. O artigo 5º, parágrafo 1º, da Lei 14.301/22 prevê as hipóteses em que o afretamento de navios estrangeiros será autorizado.
A lei, adicionalmente, fez cair a regra que dispunha sobre a limitação de afretamento de navios estrangeiros e a necessidade de circularização (processo de consulta) perante a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) (artigo 19), com o objetivo de checar a possível inexistência/indisponibilidade de embarcação brasileira de tipo e porte para a navegação pretendida.
Há uma expectativa de que o BR do Mar contribua para o barateamento do custo dos fretes marítimos e para a redução da dependência do modal rodoviário. No entanto, durante a discussão da lei, houve a preocupação de que ela causasse concentração de mercado. Afinal, quais devem ser os efeitos?
Bernardo Mendes Vianna e Erika Chaves: Não obstante as vozes contrárias, existem ainda muitas dúvidas quanto à atratividade do Programa de Estímulo. Tanto o mercado da cabotagem — especialmente o de pequenas e médias empresas que podem encontrar maiores dificuldades para acessar o incentivo —, como o da indústria naval brasileira têm criticado muito as inovações introduzidas pela nova lei. A indústria naval, sobretudo diante da dispensa de investimento das EBNs em frota própria, tende a concluir que essa questão poderá importar em verdadeiro desestímulo à construção de embarcações em território nacional.
Quando examinamos o custo operacional da cabotagem brasileira, lidamos de forma geral com três itens básicos: mão-de-obra (e seus encargos), combustível e seguro das embarcações. Com relação à mão-de-obra, a lei não trouxe qualquer novidade ou regramento novo de impacto. Por sua vez, ela é omissa no que diz respeito ao segundo item, tendo perdido a oportunidade de criar regras que pudessem beneficiar as EBNs. Por fim, a nova lei permitiu que as EBNs contratem seguro e resseguro das embarcações no exterior, possibilidade essa que sempre existiu através das apólices emitidas pelos denominados de P&I Clubs (Protection and Indeminity). O que se percebe, portanto, é que com relação ao custo operacional as novas regras parecem não ter trazido grandes estímulos.
Tem-se, ainda, que a nova lei teve vetado importante regime tributário de incentivo à modernização e expansão de estrutura portuária (denominado Reporto), estabelecido pela Lei 11.033/2004 e que estava em vigor até dezembro de 2020. Tal fato igualmente foi visto como um banho de água fria nas expectativas do mercado.
Esse cenário até poderá ser diferente quando falamos do mercado de cabotagem para navios de contêineres, no qual se espera um discreto crescimento com a possível vinda de navios para atender à demanda brasileira, mas que, na visão de alguns especialistas, não trará impactos suficientes para proporcionar uma redução de custos significante.
De fato, durante a tramitação do projeto de lei (BR do Mar), muito se discutiu acerca de uma possível concentração de mercado com a abertura para o afretamento de embarcações por subsidiárias estrangeiras. Neste particular, é importante que se deixe claro que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) leva sempre em consideração a queda de barreiras e a abertura do mercado, ainda que possa prejudicar o mercado nacional. Não obstante, especialistas do setor de defesa econômica preveem uma concentração, seja pelos acordos que poderão ser operados entre as EBNs e subsidiárias estrangeiras, seja pelas possíveis e já bradadas fusões entre os armadores. É aguardar para ver se tais previsões irão se concretizar.
A BR do Mar deverá trazer mais segurança jurídica para a navegação de cabotagem? Em quais aspectos?
Bernardo Mendes Vianna e Erika Chaves: Para que possamos falar de segurança jurídica, dependeremos ainda de futura regulamentação, por meio de Decreto do Poder Executivo e atos normativos da Antaq.
Referida regulamentação se afigura de suma importância para a análise no tocante à segurança jurídica conferida por essa lei, tendo em vista que, dentre outros aspectos, permitirá que os interessados possam conhecer as regras que regerão suas habilitações e permanência no Programa de Estímulo BR do Mar, o que não foi estabelecido, tampouco detalhado na lei.
Fonte: Legislação e Mercado