Da defesa das privatizações à luta contra desigualdade: como o discurso do FMI mudou nos últimos 40 anos
Em janeiro de 2020, poucos meses depois de assumir como diretora-geral do FMI (Fundo Monetário Internacional), a búlgara Kristalina Georgieva escreveu que aumentar a tributação sobre os mais ricos pode ser uma boa solução para reduzir a desigualdade. No blog do FMI, ela defendeu que era preciso que houvesse uma “mudança de pensamento” nesse sentido.
“Tributação progressiva é um componente-chave de uma política fiscal efetiva. Nossas pesquisas mostram que as alíquotas marginais podem ser elevadas no topo da distribuição de renda sem sacrificar o crescimento econômico.”
Nos últimos anos, não apenas o tema da desigualdade, mas o da pobreza e do crescimento inclusivo passaram a fazer parte do vocabulário do FMI. Um contraste com as visões que tornaram o fundo conhecido: Estado mínimo, redução de impostos para empresas, privatizações.
Da função burocrática a instrumento da Guerra Fria
O FMI foi criado em 1944, no fim da Segunda Guerra, na mesma “chocadeira institucional” que deu origem ao Banco Mundial e à ONU (Organização das Nações Unidas), lembra o professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EESP-FGV) Leonardo Weller, PhD em História Econômica pela London School of Economics (LSE).
Nasceu com a missão de promover estabilidade econômica em uma época em que o mundo passava por uma grave crise cambial. Na esteira do crash da bolsa de 1930 e das duas grandes guerras, dezenas de países passaram a desvalorizar artificialmente suas moedas para incentivar as exportações.
Os acordos de Bretton Woods, que deram origem ao FMI, tentavam consertar as assimetrias geradas por essa corrida com um sistema de câmbio fixo, em que as moedas eram atreladas ao dólar. “Nas décadas de 1950 e 1960 era um órgão mais burocrático”, diz Weller.
As coisas começaram a mudar, contudo, nos anos 1970. De um lado, Bretton Woods deixou de existir, esvaziando aquela função inicial de manter o sistema global de câmbio fixo. De outro, a Guerra Fria recrudescia, opondo dois modelos econômicos — o capitalismo e o socialismo — e dois países — Estados Unidos e União Soviética.
Em busca de ressignificação, o FMI começou a emprestar para países que precisavam colocar a economia em ordem. Virou uma espécie de emprestador de última instância. E suas políticas passaram a ser gradativamente mais influenciadas pelos Estados Unidos, o membro com a maior parcela de cotas do fundo e, portanto, maior peso nas decisões.
Weller e outros dois colegas, o pesquisador Ariel Akerman e João Paulo Pessoa, analisaram mais de 500 contratos de empréstimos do FMI entre 1970 e 2014 e concluíram que o fundo, longe de ser imparcial, foi usado como instrumento de “luta contra o comunismo” durante a Guerra Fria.
Na prática, países geograficamente mais próximos de nações sob influência soviética tinham maior facilidade para tomar empréstimos. A lógica era de que manter a prosperidade e afastar as crises econômicas reduziria as chances de esses países flertarem com o socialismo.
O trabalho se junta a outros que, no decorrer das últimas décadas, identificaram influências geopolíticas nos condicionantes que o FMI colocava para os tomadores dos empréstimos.
A década de 1980 e os calotes na América Latina
Os anos 1970 se mostraram um período de grande liquidez global, o que favoreceu uma onda de empréstimos pelo fundo, inclusive a países da América Latina.
No Brasil, que vivia os anos de chumbo da ditadura, o governo aproveitou os juros baixos para financiar o que a propaganda da ditadura vendeu como o período do “milagre econômico” — e que desembocou na chamada “década perdida”.
Conforme os registros do FMI, o país negociou com o fundo praticamente todos os anos entre 1965 e 1972 (os chamados “acordos stand-by”) e sacou de fato cerca de 26% do valor liberado.
O governo militar tomaria ainda um último empréstimo em 1983, um ano marcado por greves e manifestações de rua. A economia já estava em crise, com inflação e desemprego em alta.
Em um dos protestos em julho daquele ano, contra um decreto-lei que limitava o reajuste dos salários, “fora daqui FMI” foi um dos slogans entoados por uma multidão de quase 50 mil pessoas no Rio de Janeiro. Em 1987, o Brasil daria calote no FMI. A última de uma sequência de moratórias na região.
A primeira foi a do México, em 1982. E esse é um momento de inflexão importante. “É aí que acontece a formação do FMI tal como a minha geração conhece, de imposição de políticas contracionistas, ortodoxas”, pontua Weller.
Ascensão e queda do Consenso de Washington
Essa política atingiu seu ápice na década de 1990, quando o FMI se tornou bastião do chamado Consenso de Washington, um conjunto de recomendações que partia da premissa de que o mercado era capaz de resolver seus próprios problemas.
É a ideia de Estado mínimo, que vem acompanhada de políticas de abertura comercial, desregulamentação da economia, privatizações, redução da carga tributária para as empresas, enxugamento de gastos públicos.
Eleito em 1989, Fernando Collor de Mello abraçou a proposta: abriu a economia e deu início a um grande programa de privatizações, retomado pelos governos seguintes, de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
No fim do primeiro governo FHC, contudo, o Consenso de Washington foi colocado à prova quando a Ásia mergulhou numa crise em 1997, levando parte do mundo junto.
O receituário clássico do FMI, diz Weller, apesar de “discutível”, talvez fizesse algum sentido no contexto da América Latina dos anos 1980, com países bastante fechados, com um Estado inchado e estatais bastante ineficientes.
O problema é que, ao contrário dos países latino-americanos, Coreia do Sul, Tailândia, Cingapura, Malásia e Indonésia já tinham economias relativamente abertas e uma estrutura de despesas públicas mais enxuta.
“Eles [o FMI] erraram muito. Pegaram o mesmo remédio que vinham dando para a América Latina e colocaram lá — e a crise só piorou”, ressalta o economista.
Em vez de aumentar a eficiência da economia, os cortes de gastos aprofundaram a crise e geraram uma onda de críticas ao fundo.
Talvez não por acaso, a crise da Ásia marca o fim do Consenso de Washington como narrativa dominante de crescimento dentro do FMI.
Essa é uma das conclusões de um estudo feito por três economistas do fundo, intitulado Crouching Beliefs, Hidden Biases: The Rise and Fall of Growth Narratives (A Ascensão e Queda de Narrativas de Crescimento), o artigo, que é um trabalho de pesquisa e não reflete a visão institucional do FMI, analisou 4.620 relatórios entre 1978 e 2019.
A conclusão foi de que o Consenso de Washington deu lugar à “Constelação de Washington”. Um conjunto amplo de termos começou a aparecer nos documentos quando o assunto é crescimento da economia: desigualdade, investimento público, acesso ao sistema financeiro, ambiente de negócios.
“Chamamos de ‘constelação’ porque esses termos, pelo menos à primeira vista, parecem desconectados. Não há uma teoria unificada que ligue crescimento com qualificação, produtividade, turismo, ambiente de negócios, facilidade para fazer negócios, acesso ao sistema financeiro, infraestrutura e desigualdade…”, disse à BBC News Brasil Reda Cherif, um dos autores do artigo.
A ideia é que as constelações são formadas por estrelas que não necessariamente estão no mesmo plano ou a uma mesma distância da Terra, mas, vistas de longe, elas formam um desenho lógico. “É um pacote que, pelo menos nós, economistas, não vemos como parte de uma grande teoria coerente. É uma espécie de mudança de estratégia, lidar com a questão por diferentes ângulos.”
Para o economista Barry Eichengreen, professor da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, e ex-consultor do FMI, a crise financeira de 2008 teve um papel fundamental nessa guinada.
“A crise na Grécia foi importante para conscientizar os principais acionistas do FMI, os países ricos, de que os programas de ajuste que agravavam a pobreza e a desigualdade provavelmente não seriam politicamente sustentáveis e, assim, tinham baixa probabilidade de funcionar”, escreveu, em entrevista por e-mail à BBC News Brasil.
“Antes, esses acionistas pensavam que as objeções aos programas do FMI refletiam falta de vontade política e outros problemas específicos dos mercados emergentes. O que aconteceu na Grécia a partir de 2010 foi surpreendente, pois mostrou que os mesmos problemas existiam nos países desenvolvidos. Em outras palavras, esses problemas eram universais e, portanto, mereciam ser enfrentados”, completa.
A Grécia foi um dos países mais afetados pelo tsunami que se seguiu à crise financeira de 2008. Fechou diferentes acordos de socorro financeiro, também com o FMI. Como contrapartida, teve de fazer uma série de reformas, mudar o sistema de aposentadorias e cortar gastos públicos.
O custo humano foi alto. Em 2015, com uma retração acumulada de quase 30% no PIB, o desemprego bateu 27% e passou de 60% entre os jovens. Uma onda migratória levou 400 mil pessoas a deixarem o país, reduzindo a população em 4%.
A essa altura, boa parte dos países da América Latina já tinha tomado uma “vacina anti-FMI”, como descreve Weller. À medida que conseguiram quitar suas dívidas, as principais economias da região focaram em formar um colchão de reservas em dólares para evitar novas crises cambiais.
“Os argentinos só não fizeram isso porque não conseguiram.” A Argentina até hoje renegocia sua dívida. O Brasil quitou o que devia em 2005 e hoje é credor, ou seja, suas cotas no fundo são usadas nos empréstimos concedidos aos países-membros.
O impulso de uma pandemia
A chamada “Constelação de Washington” parece ter ganhado ainda mais força com a pandemia de covid-19, que expôs e aprofundou as desigualdades mundo afora. Desde o início da crise sanitária em 2020, o FMI emprestou mais de US$ 115 bilhões, usados para financiar, por exemplo, o fortalecimento de programas de proteção social e a saúde.
Falando sobre o tema da desigualdade em entrevista ao podcast Equals em setembro de 2020, Georgieva destacou que, nos acordos com países em desenvolvimento, em 90% dos programas do FMI hoje são estabelecidos pisos mínimos para gastos sociais.
Fonte: BBC News